A dissolução da autoridade

Somos todos os dias bombardeados nas notícias com fenómenos extremos, desgraças naturais causadas pelas alterações climáticas e desgraças humanas vítimas do nosso egoísmo; furacões, ondas de calor, fogos descontrolados; movimentos de extrema direita pela Europa, construção de uma Europa fortaleza onde vivemos as nossas higiénicas vidinhas, refugiados que morrem afogados ao fazer a travessia das suas vidas, migrações em larga escala, detenção de crianças e afastamento das suas famílias em campos.

Serão assim tão evidentes os disparates que temos suportado? Terá o apocalipse chegado?

A revelação chega-nos de muitas formas, umas vezes inesperadamente outras propositadamente. Ao contrário daquilo em que muitos de nós fomos acreditando ao longo da vida a revelação, ou o apocalipse, não é a peça do puzzle a que podemos sobrepor toda a realidade.

Se Marx estava correto em afirmar que a poesia de que a revolução no nosso tempo necessita não deve ser retirada do passado mas do futuro e das potencialidades humanistas que estão no horizonte da nossa vida social, então não podemos retirar essa consciência e sensibilidade apenas da poesia, a nossa consciência e vida moderna sabe bem que isso não bastaria. Falta-nos qualquer coisa, a meio da poesia e da ciência, uma transcendência das duas que as transcenda para uma nova realidade teórica e prática.

A mitologia nórdica conta-nos uma história de um tempo em que a todos os seres estava atribuído um lugar terreno: aos deuses um domínio celeste, Asgard, aos homens a terra, Midgard, por baixo ficava Niffleheim, o domínio escuro e gelado dos gigantes, anões e mortos. Todos estes domínios estavam ligados por enorme freixo, a Árvore do Mundo. Tinha ramos que chegavam ao céu e raízes que alcançavam as profundezas da terra. Apesar de constantemente mutilada por animais permanecia sempre verde, renovada por uma fonte mágica que continuamente lhe dava vida.

Os deuses que formaram este mundo presidiam na realidade a um precário estado de tranquilidade. Baniram os seus inimigos, os gigantes, para a terra do gelo, Fenris o lobo foi preso e a grande serpente de Midgard afastada e mantida a uma distância segura.

Apesar de todos os perigos ocultos prevalecia uma paz geral e havia tudo em abundância, tanto para deuses, para homens e para todas as coisas vivas.

Odin, o deus da sabedoria, reinava sobre todas as divindades, o mais forte e o mais sábio, supervisionava batalhas humanas e escolhia o mais bravo dos perdedores para festejar consigo na sua grande fortaleza, Valhalla. Thor, filho de Odin, era não só um guerreiro poderoso, protetor de Asgard contra os gigantes inquietos, mas também era uma divindade defensora da ordem, fazendo cumprir a fé entre os homens e os tratados. Havia deusas e deuses com fartura, da fertilidade, do amor, da lei, do mar e dos barcos e uma multiplicidade de espíritos animistas que habitavam todas as coisas e todos os seres da terra.

Se não existem regras que permitam um enraizamento de um desenvolvimento social e de um modo económico ou cultural fechado, se não há "leis sociais" que permitam identificar uma orientação intelectual para a descrição de fenómenos sociais, então quais são as coordenadas que devemos tomar para guias sociais?

Talvez a principal divisão política moderna e que podemos honestamente fazer e que ilumina realização humana será a distinção entre libertário e autoritário. Não quero com esta separação implicar que qualquer um destes dois termos expressam um sentido final ou fim da história ou que estão livres de ambiguidade.

Se existe um limite no fim na história da humanidade, um absoluto hegeliano ou um comunismo marxista, ou mesmo uma extinção, não cabe a esta geração em particular afirma-lo. Ou outra em geral. A metáfora de que a resolução da questão social resolverá e marcará de uma vez por todas o início da verdadeira história da humanidade também é por vezes útil.

O compromisso do iluminismo nos avanços tecnológicos é o menos fiável sistema de coordenadas que podemos arranjar. Hoje no nosso mundo, no mais tecnologicamente avançado, onde até a ética ganhou o qualificativo de instrumental, somos obrigados a reconhecer que até as nossas mais desejadas propostas, convivialismo, podem ser usadas para a guerra.

Temos que realçar que as palavras libertário e autoritário se referem não só aos conflitos na forma de instituições, técnicas, razão e ciência, mas, e principalmente, de valores e sensibilidades em conflito i.e. choque de epistemologias.

A imagem de libertário, com definida por Bookchin, podia ter a receita simples: a imagem de unidade na diversidade, espontaneidade, relações humanas complementares, livres de toda a hierarquia e dominação. Por autoritário, refiro o guia de hierarquia e dominação como guia social: gerontocracia, patriarquismo, relações entre classes, elites de todos os tipos e finalmente o estado, particularmente na sua pior forma social parasitista, a de capitalismo de estado.

Mas se não incluirmos o conflito de sensibilidades, ciências, técnicas, éticas, e formas de pensamento, os termos "libertário" e "autoritário" ficarão simplesmente como termos institucionais a que lhes é atribuído apenas um carácter implícito ou de decoração.

Se queremos que estes termos tenham significado e que sejam revolucionários devem as suas implicações ser explicitadas em toda a sua extensão de modo a cobrir uma larga banda de experiências.

À racionalidade, na tensão entre o libertária e o autoritária, deve ser permitida sair e afirmar a sua racionalidade libertária.

Levamos longe de mais a crença de que a racionalidade libertarária deve ter alguns canons de verdade e consistência, de intuição e de contradição que invalidando a atribuição de formalidade e analiticidade do pensamento ao pensamento.

Com o argumento de que a intuição e contradição servem mais adequadamente os fins do autoritarismo nas tradicionais filosofias do fascismo e o materialismo dialético estalinista, da mesma forma que o pensamento analítico serve a liberdade de pensamento, não temos um guião que nos sirva para além dos nossos critérios éticos que garantam que o nosso modo de pensamento nos trará necessariamente conclusões emancipatórias. As figuras de Buda e de Cristo foram usadas com sucesso para os fins autoritários como usadas para a liberdade. O misticismo e o espiritualismo radical foram tanto de antinaturalista e antihumano como ecológicos e milenares.

O que é decisivo quando consideramos canons da razão, ou mais precisamente uma nova abordagem ao subjetivo, é a extensão pela qual levantamos um standart ético biótico baseado na fecundidade da vida, na virtude da complementaridade, na imagem lógica de um mosaico de experiências cada vez mais rico, em vez de uma visão hierarquisada da experiência. Não precisamos de abandonar o Organon de Aristóteles, que serviu bem o mundo ocidental, uma qualquer teoria de sistemas onde uma noção circular de causalidade junta o início com o fim.

Temos apenas de esculpir a razão numa ética carregada de sensibilidade individual e socialmente emancipatória, seja ela linear ou circular.

Criado/Created: 17-02-2020 [18:08]

Última actualização/Last updated: 28-02-2020 [10:30]


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(c) Tiago Charters de Azevedo