Valeu a pena?
Umas das questões relevantes de comunicação, no controlo da contenção da propagação da epidemia e sua justificação, é saber-se como estimar quantitativamente a influência das medidas de contenção a que voluntariamente nos temos submetido para controle da evolução da epidemia. É uma questão relevante sabermos se os sacrifícios que temos feito valeram a pena e se de facto valeu de alguma coisa o termos ficado em casa. Do ponto de vista qualitativo parece que conseguimos achatar a curva e reduzir, e bem, o sofrimento, o número de óbitos e salvaguardar os que mais necessitavam de ajuda e as suas famílias. Fizemos bem.
No entanto, na ausência de explicações quantitativas dadas pelas Direção Geral de Saúde (DGS) e na fragilidade operacional dos dados que nos chegam publicamente todos os dias precisaríamos de muita água benta para simplesmente aceitarmos os relatos diários nas conferências de imprensa como a última e definitiva versão dos factos.
Façamos então umas contas com o seguinte objectivo: encontrar uma forma, com os dados públicos que temos, de determinar a evolução da epidemia e estimar o que aconteceria se num dado dia tivéssemos abdicado das restrições a que auto nos infligimos. Há quatro datas importantes:
- 12/março: anúncio do fecho de escolas (11 dias depois do 1º contágio)
- 16/março: fecho de escolas (15 dias depois do 1º contágio)
- 18/março: anúncio estado de emergência (17 dias depois do 1º contágio)
- 22/março: estado de emergência (21 dias depois do 1º contágio)
Com estas quatro datas podemos tentar perceber o que aconteceu. Para além do número total de infectados, que nos é dado pelo relatório da DGS, precisamos de saber dois números: o número básico de reprodução R0 e o seu valor efectivo diário Rt.
O valor de R0 diz-nos a taxa à qual o vírus se transmite, qual o número de pessoas, em média, que uma pessoa infetada contaminará numa comunidade onde não existe imunidade. O valor de R0 pode variar de país para país, de região para região, devido a flutuações na distribuição de idades ou diferenças culturais de interação social. Para Portugal a estimativa dada pela DGS1 para R0 é aproximadamente igual a 2.08.
Ou seja, a dia 1 de março tínhamos 1 infectado, no dia seguinte 2 novos casos, depois 4 e depois 8, e assim por diante R0, R0^2, R0^3, ... uma progressão geométrica de razão R0. O número acumulado ao fim de N dias é a soma dos N termos dessa progressão
R0 + R0^2 + R0^3 + ... + R0^N =(R0^N-1)/(R0-1).
Matéria do programa de matemática do 11º ano de escolaridade obrigatória ;)
A versão efetiva deste número, Rt, i.e. o número de reprodução num determinado dia t, é o valor atualizado da taxa de transmissão num dado momento. Varia consoante as medidas de controlo da epidemia, isolamento físico, quarentena, restrições de viagens e mobilidade, encerramento de escolas, uso de máscaras, etc,... Este tem de ser calculado com os dados que nos são divulgados pela DGS. Sabendo-o podemos aferir das eficiência das medidas que implementamos (há uma questão do atraso relativamente à implementação das medidas e a sua observação... mas isso requer outros parâmetros de análise).
A figura seguinte mostra a estimativa de Rt ao longo dos 61 dias de epidemia. O gráfico difere daquele oficialmente apresentado pela DGS e está relacionado com o segundo valor de que precisamos, o tempo característico de propagação do vírus que depende, como o Rt, das circunstâncias locais onde o vírus se propaga. Como não tenho maneira de o estimar vou assumir que o tempo característico de propagação é da ordem de 7 dias. Suspeito que a estimativa2 da DGS andará à volta dos 3 dias3.
Podemos assim verificar o que aconteceria se num dado dia, e.g. a 16 de março quando as escolas fecharam, as escolas não estivessem fechadas. Qual seria o comportamento do número total de infectados se nada tivesse sido feito? A resposta é dada pela curva a laranja.
E o que aconteceria se o Estado de Emergência não tivesse sido implementado? Resposta na curva a roxo. E assim por diante.
O que este exercício mostra é que a evolução passada da epidemia não é compatível com a evolução básica geométrica do modelo simples mostra apenas que as medidas de contenção tiveram efeito na evolução.
O que aconteceria se o "pico" não tivesse existido? A curva a negro o que aconteceria se nada tivéssemos feito.
Podemos então responder à questão inicial.
Valeu a pena?
Valeu. Vale.
Nota
Depois da partilha deste texto surgiram algumas questões relacionadas, argumentando que sobre o facto da não existência de experiência sobre a não concretização das medidas não se poderia concluir o efeito de crescimento básico que o número de reprodução indica por não se ter aplicado a medida de contenção. É uma boa crítica. Foi sugerido que se fizesse uma análise contra-factual utilizando uma abordagem Baysiana estimando em cada dia o valor mais provável, usando uma função de máxima verosimilhança, para o número de infectados dia a dia.
Assim como a resolução do paradoxo de Hempel mostra, que o facto de maçãs verdes validarem, por não serem pretas, que todos os corvos são pretos, têm pouca importância para a discussão sobre a evidência se todos os corvos são pretos (como mostraria a prova contra-factual) e porque são de facto pretos, assim também a contra-factual neste caso, por existir um modelo epidemiológico, a contribuição da contra-prova neste caso mostrará que a informação obtida por esse exercício pouco validará a evidência explicada: que as medidas de contenção tiveram efeito na evolução.
Notas e referências
1. Relatório sobre a aplicação da 2.a declaração do estado de emergência, 3 de abril de 2020 a 17 de abril de 2020
2. Plano de Desconfinamento, Conselho de Ministros, 30 de abril 2020
3. O gráfico referido é este (da referência 2.).
A minha estimativa com 2.5 dias é esta.
Criado/Created: 01-05-2020 [16:32]
Última actualização/Last updated: 27-11-2024 [17:00]
For attribution, please cite this work as:
Charters, T., "Valeu a pena?": https://nexp.pt/ddr/justifica.html (01-05-2020 [16:32])
(c) Tiago Charters